Por Aline Frutuoso
Introdução
As mulheres negras no Brasil enfrentam múltiplas formas de opressão ligadas à raça, gênero e classe, e essa realidade também se manifesta nas igrejas evangélicas. Apesar de sua presença expressiva e contribuição fundamental, elas continuam marginalizadas nos espaços de liderança e tomada de decisão. Vilma Piedade ressalta que “a relação entre mulher negra e poder é um tema praticamente inexistente” (PIEDADE, 2017, p. 15). Maricel Mena López (2023) complementa, destacando que a ausência dessas mulheres em posições de comando perpetua um ciclo de exclusão estrutural.
O conceito de dororidade , criado por Piedade, reforça a união entre mulheres negras a partir da vivência do racismo e do machismo. Mais do que sororidade, trata-se do reconhecimento das dores compartilhadas pelas mulheres negras e da necessidade de ressignificá-las. Nesse contexto, a teologia das mulheres negras se configura como um ato de resistência dentro das igrejas, promovendo acolhimento e transformação.
Mesmo sendo maioria em muitas igrejas evangélicas, as mulheres negras continuaram restritas às funções subalternas, enquanto os cargos de liderança são ocupados majoritariamente por homens brancos. Essa exclusão vai além da falta de representatividade, evidenciando também um apagamento histórico: suas vozes, dores e perspectivas raramente são consideradas nos debates teológicos e decisões litúrgicas.
A pesquisa feita pelo Datafolha, publicada por Simony dos Anjos na Carta Capital , afirma que as igrejas evangélicas são predominantemente femininas e negras, mas essa presença não se traduz em poder institucional (DOS ANJOS, 2023). Essa disparidade reforça um ciclo de exclusão, onde as mulheres negras seguem relegadas ao serviço comunitário, sem acesso a espaços de tomada de decisão.
Escuta como Ato Sagrado de Resistência
A escuta ocupa um papel central na prática teológica das mulheres negras. Mais do que um ato de empatia, a escuta é uma ferramenta política e espiritual que rompe com o silenciamento histórico. Compartilhar suas vivências permite que essas mulheres tenham suas experiências reconhecidas e validadas, criando um espaço de fortalecimento e aprendizado.
Além disso, a escuta desafia as posturas tradicionais, questionando a ausência de mulheres negras nos espaços de poder e ressignificando seu papel na vivência religiosa. Dessa forma, a escuta se torna um elemento de transformação, abrindo caminho para novas formas de espiritualidade e pertencimento.
Acolhimento como Espaço de Cura e Reexistência
Para que haja efetividade no acolhimento entre e das mulheres negras nas igrejas evangélicas, é importante que este, fundamente-se na dororidade e na construção de redes de apoio. Como afirma Vilma Piedade, “não é só sororidade, é Dororidade” (PIEDADE, 2017, p. 8). Esse acolhimento precisa ir além do apoio emocional: ele deve ser um ato de fortalecimento espiritual e político, ajudando essas mulheres a transformar a dor em resistência coletiva.
Caldeira (2022) aponta que o acolhimento entre mulheres negras desafia as estruturas raciais e patriarcais das igrejas, possibilitando a criação de novas formas de comunidade de fé. Esse processo de cura coletiva é essencial para tornar as igrejas mais inclusivas e equitativas.
Ressignificar a dor é um passo fundamental para as mulheres negras nas igrejas, pois lhes permite transformar experiências de marginalização em uma espiritualidade libertadora. Como destaca López (2015), “a identidade negra está ligada à pertença e ao compromisso de reconstruir a história compartilhada pelos ancestrais”.
Esse processo também se reflete na forma como as mulheres negras reinterpretam os textos bíblicos e as práticas litúrgicas. Ao ressignificar suas vivências, elas constroem uma teologia feminista negra que desafia as estruturas excludentes das igrejas e propõe novos modelos de liderança espiritual.
Arte e Dororidade: Expressão e Resistência
A doridade também se manifesta na arte, um meio poderoso de expressão e ressignificação da dor. A experiência de dor das mulheres negras pode ser transformada em literatura, música, dança, artes visuais, e tantas outras formas livres e criativas de expressões artísticas criando espaços de cura e empoderamento coletivo.
A arte permite que essas mulheres compartilhem suas histórias, questionem narrativas racistas e reafirmem sua existência. Ao expressarem suas vivências por meio da arte, elas fortalecem sua identidade e constroem um legado de resistência e resiliência. Como destaca Piedade, a dororidade contém “as sombras, o vazio, a fala silenciada” (PIEDADE, 2017, p.18), e a arte é um instrumento para trazer essas experiências à luz.
Considerações Finais
A prática teológica das mulheres negras nas igrejas evangélicas brasileiras pode e deve ser um exemplo de resistência. A escuta, o acolhimento e a ressignificação da dor abrem caminhos para uma teologia transformadora que questiona e desafia as estruturas de opressão e propõe novas possibilidades de vivência espiritual.
Embora ainda sejam invisibilizadas em muitos espaços, essas mulheres têm promovido mudanças significativas nas igrejas evangélicas, transformando sua fé em um instrumento de empoderamento e justiça social. Como afirma López (2015), “a teologia feminista negra afirma que a experiência das mulheres é o ponto de partida da reflexão teológica”. Assim, a luta das mulheres negras vai além da busca pela inclusão — é um chamado à transformação tanto das igrejas evangélicas quanto da sociedade como um todo.
REFERÊNCIAS
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Aline Frutuoso
Economista e teóloga brasileira. Doutoranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Integrante do Agar-Sociedade Teológica de Mulheres Negras. Ela escreve sobre teologia feminista negra, mulherismo e descolonização.